quinta-feira, 19 de julho de 2018

Cem anos de Dadá

Leda Férrer (edaferrer@yahoo.com.br)

Taboão daSerra

ESTÓRIAS

Cem anos de Dadá


CEM ANOS DE DADÁ... 
Era primavera, vi uma velhinha andando devagar resmungando e com a ponta 
de sua bengala retirando as flore s amarelas de seu caminho. Passou por mim dando 
bom dia e ressaltou a necessidade de cortarem os ipês que sujavam tudo. Em vão 
falei da beleza deles. Ela balançou a cabeça negativamente e começou uma conversa 
como grandes amigas. Contou-me que tinha 99 anos e seus cabelos nunca haviam 
recebido tinta, os poucos fios brancos vieram após ter perdido uma filha acometida 
por um aneurisma cerebral aos 50 anos de idade e ficou pensativa, uma sombra de 
tristeza nevou seu olhar e embargou sua voz, depois continuou... 
- Sabe filha, já vi, ouvi e senti muitas coisas nesse mundo, o que era feio não é 
mais tão feio, o bonito também não é mais tão bonito, o errado virou certo e o certo 
ninguém liga. Nosso olhar muda, aquela flor é bonita na árvore, mas feia no chão. - 
E desfiando o rosário, continuou - Meu nome é Alda, mas me chamam de Dadá, vou 
fazer 100 anos, mas não sei se chego lá. 
- Nem parece que tem essa idade, ainda mais com esses ca belos pretos! 
- Nunca pintei, é verdade, acho que é porque nasci em fazenda e tomei leite 
de cabra. Tive cinco filhos e só um marido. Antes de me conhecer, ainda novo, 
Dionísio, meu marido, havia casado com Adélia, que o largou deixando apenas o 
quadro com o retrato dele virado para a parede. Mas seu grande amor foi Altamira, 
sua noiva. Como era rapaz fogoso, se envolvia com mulheres casadas e com as do 
cabaré. Um dia Altamira soube e jogou a aliança nele. Ele implorou seu perdão, mas 
Altamira não quis ouvir suas súplicas e com a decepção entrou para um convento em 
Pernambuco de onde não saiu mais. Dionísio ficou apenas com seu retrato. 
Meu pai morreu quando eu tinha cinco anos. Na adolescência eu sonhava em 
sair da fazenda e ir para a cidade ver o movimento, ter amigas, ir ao cinema e dançar. 
Fui e minha mãe me recomendou à suas irmãs e antes dela ter engravidado do último 
filho eu já estava sob o rigor e autoritarismo de mi nhas tias. 
Novamente a cortina de tristeza desceu sobre seus olhos com a lembrança e 
relatou que houve complicação no parto e a parteira só conseguiu salvar a criança e 
a mãe morreu. O sofrimento foi grande para Alda que nem pôde comparecer ao 
enterro de sua mãe. Os anos passaram, a dor virou saudade e continuou sob a 
vigilância implacável das duas tias solteironas, que não a deixavam namorar, e a 
sobrecarregavam com tarefas domésticas. Mesmo escondida começou um romance 
com seu primo Sergio, mas quando as tias descobriram foi um reboliço, a família 
impediu o namoro com veemência e ameaças. Combinaram de fugir e Sérgio a 
esperava no local escolhido, ela teve medo e não foi, deixou que ele partisse sozinho. 
Ambos nunca esqueceram aquele grande romance partido. 
- Dona Alda, gostaria de entrar para um café e um bolinho de fubá? - 
- Eu aceito. Entrando na casa continuava - Tive outros namorados, mas 
nenhum elas aprovavam e eu tinha Sergio no pensamento. Os anos passaram e 
conheci Dionísio, que por mim se encantou "moça de pele alva e olhos de esmeralda" 
ele dizia. Era inteligente, tinha uma coluna no jornal e escrevia poesias para mim. 
Tão belas palavras me encantavam. Mas homem desquitado e cuja mãe era negra, 
minha família jamais permitiria a união. Dionísio não se deu por vencido até que um 
dia fugimos, casamos na igreja e fomos morar com seus pais. Minha família após o 
escândalo, não falou comigo por muitos anos. 
-Tivemos nossa primeira filha e depois de três anos fomos morar em Maceió - 
AL onde tivemos mais quatro filhos desses só um menino. 
-Este bolo está muito gostoso, posso pegar mais um pedaço? 
Continuando seu relato como se eu tivesse todo o tempo do mundo, mas fiquei 
interessada no desfecho. Contou que ficou quinze anos bem casa da e ao nascer de 
sua última filha, Ediele, a auxiliar de enfermagem que veio cuidar da criança se 
envolveu com seu marido e quando Dadá soube, foi uma briga terrível, se magoaram 
muito. Daí foi a separação de corpos, permaneceram na mesma casa por causa dos 
filhos sem um falar com o outro. Ediele nunca os viram conversar. 
Em 1967 Vanusa, havia sido transferida pelo emprego para São Paulo, alugou 
casa e trouxe o resto da família, exceto seu pai, que não quis mas visitou os filhos em 
SP, quebrando o voto de silêncio com Dadá. Posteriormente sofreu um AVC o levando 
à morte aos 72 anos. 
- A dor mais profunda no meu coração foi a morte de Vanusa. Foi uma perda 
enorme. A família toda sofreu muito. Gostei muito de conversar com você Marina. 
Já no portão tive a chance de conhecer Ediele e Nara que procurava por ela. 
Alguns meses se passaram e não a vi mais. Poderia estar doente ou até morrido.
Um dia encontrei a Ediele no superm ercado com a Dadá na cadeira de rodas e 
perguntou para ela se lembrava de mim. Dona Alda deu um sorriso balançando a 
cabeça que sim, mas duvidei, sua memória danificada e seu corpo definhado. Mesmo 
assim suas filhas iam fazer uma festa de 100 anos, pois um século de vida não é para 
qualquer um. Fui convidada. A festa foi bonita, com toda a sua descendência e amigos 
(ou filhos de amigos). 
Após três meses Dadá faleceu no hospital nas mãos da filha Ana. Foi cremada 
e suas cinzas jogadas ao mar. Seus filhos, netos e bisnetos, relembram histórias da 
Sra. Alda, algumas muito engraçadas. Passou por tantas coisas e não se abateu, não 
teve depressão, não mandou recado, falou o que pensou, perdoou, pés no chão e 
sem deixar de sonhar... sem deixar de ter esperança... 

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